Crianças narram a difícil rotina sem a mãe!
Reportagem publicada pelo Jornal Zero Hora, no dia 19 de dezembro de 2013.
Autora da matéria: Kamila Almeida
Para alertar motoristas para o drama das existências abreviadas pelos acidentes de trânsito, esta reportagem traz a história de duas crianças. Ambos aos sete anos, Miguel perdeu Alaíde, e Emily perdeu Cristiane. Dois anos se passaram, e os relatos sobre a dificuldade em lidar com a pior das notícias e a ausência do carinho da mãe estimulam uma reflexão sobre a importância da prudência ao volante.
Um saco de boxe pende na varanda da casa que Miguel Arcanjo divide com a avó em Gravataí. O menino de nove anos é filho de Alaíde da Silva Linck — bailarina morta aos 28 anos em um acidente de carro na entrada de 2012, na Estrada do Mar, no Litoral Norte. É o equipamento de pancadas que tem absorvido toda a raiva da criança. O objeto foi adquirido depois que Maria Regina da Silva, 59 anos, ouviu o neto chutando tudo no banheiro. Ao forçar a porta, ele despejou:
— Eu tenho muita raiva daqueles dois que mataram a minha mãe.
"Aqueles dois" seriam Tatieli Costa e Paulo Afonso Corrêa Júnior. A modelo e o suplente de vereador em Tramandaí à época foram apontados no inquérito policial como suspeitos de terem provocado a colisão. Dois anos se passaram, e, quando fala da saudade, Miguel ainda aperta os olhos enfatizando a dor da resposta. Fala na mãe o tempo todo. Ele e a avó transformaram um canto da casa em altar: tem fotos, as bijuterias que a bailarina usava no dia do acidente, alguns CDs que estavam no carro e a sapatilha de balé.
Alaíde dava aulas de dança, finalizava a faculdade de Educação Física e proporcionava pequenos luxos a Miguel, que criava sozinha. Com a morte dela, foram-se também o padrão de vida, os passatempos, as brincadeiras. O menino teve o plano de saúde de alto padrão cancelado, deixou de frequentar clubes e piscinas, não viaja mais para a praia, abandonou os parques e os passeios no shopping. Com a aposentadoria, Regina se esforça para manter o neto no colégio particular, a higiene e a alimentação em dia. Miguel passa os dias em frente ao computador com fones de ouvido e olhos vidrados na tela. Quando a mãe morreu, ele ainda se recuperava de uma cirurgia nos ouvidos. Como a família não tinha dinheiro para continuar o tratamento, a pediatra se dispôs a atendê-lo gratuitamente.
Nos aniversários do garoto, as amigas de Alaíde já conseguiram, com uma vaquinha, comprar tablet 3D e um Playstation. Mas pouca coisa o faz alargar o sorriso.
— É que eu sinto muuuuita saudade dela. É muito triste e complicado uma criança viver sem a mãe — responde, sentado na cama, mesclando maturidade e inocência, apoiando o queixo no dorso da mão.
Na casa da avó, que assumiu os cuidados, Miguel tem um quarto recheado de cartazes e brinquedos. Na cabeceira da cama, uma lembrança feita por ele depois que perdeu o sono noite dessas. Pegou papel, caneta, a última foto tirada da mãe e improvisou um quadrinho. Desenhou corações e um casal de mãos dadas — mãe e filho.
— Foi uma forma de expressar carinho. Teve também uma vez que eu tive a ideia de escolher uma estrela, a mais brilhante, e eu disse para a vó que aquela seria a mãe. Aí, quando a estrela aparece, vou ali na rua e grito: "Oi, mãããe! Estou aqui" — lembra a criança, que deixou de praticar esportes porque perdeu a maior torcedora.
Para reduzir a ansiedade, abraça a avó de olhos fechados e diz que fará de conta que é a mãe. Em uma madrugada recente, a avó ouviu barulho no quarto do neto. Ele sorria dormindo. Preferiu não acordá-lo. Ao despertar, ele contou que Alaíde estava ali, fazendo-lhe cócegas, e que havia mandado um recado para Regina, pedindo que parasse de chorar e se cuidasse.
— Imagina eu com ele no colo, escutando isso? É para mim que ele fala isso tudo. Agradeço a Deus por ele ser uma criança calma, mas noto que precisa de atendimento psicológico por causa do colégio — desabafa a aposentada.
Miguel, nove anos, constata: "É muito triste e complicado uma criança viver sem a mãe"
Para fazer o dever de casa, só empurrado. Perdeu o gosto pelos estudos. Era a mãe quem o ajudava nos temas. Em seus devaneios, Miguel planeja de que forma poderia ter evitado o trauma.
— Ele pergunta para mim se não deveríamos ter amarrado a Alaíde naquele dia para ela não ter saído de casa — confidencia Regina.
Impressionado com o acidente, seis meses depois do ocorrido foi à igreja. Rezando baixinho, pediu a Deus que curasse os machucados da mamãe, porque só Ele conseguiria fazer isto. Miguel agora passou a ter preocupação de gente grande. Teme pelas atitudes dos motoristas no trânsito e dá um recado singelo.
— Acho que eles têm que colocar as barbas de molho. Isto quer dizer: tomar cuidado para ver o limite de velocidade. Quando estiverem numa estrada que tem três lados, ver se não vem um carro.
De resto, vive repetindo para si e para a avó a mesma frase que falou quando soube que a mãe havia ido embora:
— Agora eu sou só teu, né, vó?
A colisão
— O acidente teria sito provocado pelo Vectra que pertencia à família de Paulo Afonso Corrêa Júnior, suplente de vereador de Tramandaí à época, dirigido pela ex-modelo Tatieli Costa, que não tinha carteira de motorista e, segundo o inquérito, apresentava sinais de embriaguez.
— Ambos foram presos em flagrante e respondem ao processo em liberdade.
— A colisão, que ocorreu na Estrada do Mar, próximo ao acesso de Xangri-Lá, também vitimou o taxista Ivo Ferrazo, 63 anos, que conduzia um Corsa.
— No Prisma de Alaíde, também estava a amiga Carine Bueno Flores, que ficou 26 dias internada no Hospital Santa Luzia, em Capão da Canoa.
— Até hoje, não houve julgamento do caso. Tatieli argumentou que o processo ainda tramita na Justiça e que não iria se manifestar. Paulo Afonso também informou, por intermédio da advogada Nilda Souza, que não se pronunciaria.
Emily Kamila tem nove anos e tem uma cicatriz que ocupa quase a lateral inteira da coxa esquerda. Os riscos na pele remetem a uma tragédia que promoveu um arrastão na casa dos Bieleski em 3 março de 2012. Naquele dia, sentada na cadeirinha no banco traseiro do Ka, a menina assistiu à morte da mãe e à retirada do pai das ferragens, após serem atingidos por um caminhão na BR-116, em Morro Reuter, no Vale do Sinos.
Emily ficou hospitalizada por 15 dias, passou por cirurgia e logo se recuperou. Ciente da morte da mãe, Cristiane Fassbinder, 25 anos, também ficou sem o pai Claudir, 33 anos, nos primeiros dois meses — tempo em que ficou internado. Levou mais seis meses até que pudesse retornar ao emprego, um ateliê de calçados em Dois Irmãos, onde moram. Os ferimentos dos dois os impediram de participar do enterro de Cristiane.
A criança, que já era calada, quase emudeceu. Transparece agora apenas nos detalhes o sofrimento pela ausência. Sobre os sentimentos mais íntimos, fala apenas com o pai. Queixa-se de saudade da mãe. Para chorar, esconde-se. Para tratar do trauma, a família encaminhou Emily a psicólogos. Recebeu alta depois de um mês. Disseram a eles que se calar também era uma forma de reagir.
Da mãe, ela guarda sapatos, algumas roupas, fotos, um caderno de poesias escritas por ela e uma coleção de esmaltes dos quais não deixa ninguém chegar perto. Para amenizar a saudade, usa as camisolas de Cristiane para dormir e reza lendo a Bíblia. Pouco se fala sobre o assunto. No começo, imagens da falecida ainda emolduravam a estante. Agora, nem isso. É doloroso enxergar todos os dias. Vez ou outra, vão ao cemitério levar flores.
— É o pai que bota as flores lá — conta Emily.
Apesar de ter sempre contado com o auxílio da mãe nos estudos, na escola não teve problemas.
— Nos temas, eu ainda consigo me virar. Pior são os trabalhos — diz a menina.
Já pensa nas profissões que quer seguir. Está em dúvida entre Direito e Odontologia por um curioso motivo: quer ganhar muito dinheiro para comprar um carrão. Em busca de colo, engatou amizade com a vizinha Silvane Siiss, 32 anos, de quem não desgruda. Dentre as maiores dificuldades notadas pelos familiares, está a tomada de decisão. Emily passou a sempre escolher o que fazer e o que vestir com base na opinião dos outros.
Para ajudar a cuidar da casa de três cômodos, a menina auxilia em tarefas simples do lar impecável: lava a louça e varre o chão. Há cinco meses, Claudir iniciou um novo relacionamento. Vê a namorada aos finais de semana. Aos poucos, a mulher conquista a afeição da menina.
O baque também foi financeiro, já que não contam mais com a renda de Cristiane. Para ficar mais tempo com Emily, Claudir deixou de fazer horas extras. O carro acidentado não tinha seguro e teve perda total. Os custos do enterro beiraram os R$ 12 mil. Há três meses, Emily foi submetida a uma nova cirurgia para a retirada de uma placa no fêmur.
Tudo vem se ajeitando há um ano, quando deixaram a casa da mãe de Claudir e voltaram para a deles. A menina cursa o 3º ano do Ensino Fundamental à tarde e, pela manhã, pratica esportes e dança. Às 17h30min, o pai busca a filha no colégio. Cuidar da casa e de uma menina sozinho deixou Claudir bem atrapalhado.
— Que nem o dia em que me dei conta de que ela já tinha seio. Sugeri: "Filha, acho que já está na hora de usar sutiã" — recorda.
São muitas as perguntas desconcertantes.
— Uma vez, meu irmão tomou um trago, saiu de carro, sabendo que não pode, bateu, prenderam ele. Ela perguntou: "Como prenderam o meu tio, pai? O cara matou a minha mãe e não foi preso" — lembra Claudir.
O Dia das Mães está entre as maiores dificuldades. Em 2012, Emily pediu que a tia Gislaine Lenir Bieleski, 34 anos, fosse à escola representando Cristiane.
— Foi muito difícil. Chorei muito. Ela se manteve tranquila — relata a tia.
Neste ano, a tarefa escolar na data era comprar um livro e presentear a mãe:
— Tinha que comprar, né? Aí, eu comprei. Mas não dei para ninguém, guardei comigo.
O acidente
— Cristiane tinha folga apenas aos domingos. Naquele sábado, 3 de março de 2012, conseguiu dispensa e viajava com a família de Dois Irmãos para visitar parentes em Nova Petrópolis, terra natal dela.
— No km 216 da BR-116, em Morro Reuter, um caminhoneiro perdeu o controle do veículo e colidiu com o Ka vermelho da família, às 8h30min.
— O motorista Vanderli Ribeiro de Souza foi indiciado por homicídio culposo e lesões corporais. A família também entrou com um processo civil pedindo indenização. Segundo o advogado de Vanderli, Léo Elon Pias, ele não teve culpa. Pias argumenta que os freios não funcionaram, e o cliente tentou de todas as formas evitar a colisão.